Comunidade indígena do Equador pede justiça por ‘privatização’ de terras ancestrais 26/05/2025 - 13:21

Há centenas de anos tida como espaço de convívio, cultivos e rituais ancestrais, parte do território da comunidade de Salango, na província de Manabí, no Equador, foi privatizada e passada irregularmente a um empresário estrangeiro, afirmam descendentes do povo indígena Manta Wankavika. Em audiência com juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no último dia 20, eles pediram justiça, alegando que o processo foi ilegal e teve a anuência das próprias autoridades equatorianas.

"Salango é uma comunidade ancestral com cinco mil anos de história e cultura”, afirmou Robinson Arcos, representante do povo indígena na audiência. “Ser parte de Salango representa minha vida, a da minha esposa, dos meus filhos. Nesse lugar vivíamos e tínhamos acesso às praias. Meus filhos viveram ali, foi onde aprenderam a nadar, desenvolveram suas habilidades. Mas meus netos já não têm esse acesso. Só podem ver, porque foi tudo privatizado.”

Arcos afirmou que tudo mudou com a chegada de “um empresário suíço poderoso” à região, que se aproximou aos poucos dos habitantes com um centro de reciclagem e foi se integrando à comunidade até se apropriar ilegalmente de suas terras.

“Antes aproveitávamos, convivíamos, recebíamos o sol, o ar. A convivência na comunidade é muito diferente da convivência da cidade. É um ambiente que nos dá saúde e força. Para mim, isso é Salango”, afirmou o representante indígena.

Essa não foi a primeira investida contra as terras Salango. Segundo Robinson Arcos, décadas atrás, duas companhias estrangeiras chegaram ao território, com documentos supostamente obtidos de autoridades locais, dizendo que aquela região os pertencia.

“Chegaram com capatazes, administradores e guardas armados com os supostos títulos de propriedade, dizendo que as terras produtivas das montanhas eram deles. E tomaram posse, começaram a intervir na comunidade com um modelo de exploração dos recursos naturais, colocando nossos pescadores para trabalhar para eles nas terras que eram dos salanguenhos”, contou Arcos aos juízes.

“Isso acabou nos anos 1970, porque o modelo agrícola que eles usaram se debilitou. Sem os recursos naturais, e com nosso povo organizado com mais força e pressão, eles se retiraram de Salango. Seus documentos não eram reais. E a comunidade de Salango permaneceu”, disse.

Arcos compartilhou detalhes sobre as atividades ancestrais no território, como a pesca realizada de acordo com as fases da lua, ou a “pesca de pulmão”, realizada por pescadores mergulhadores da própria comunidade.

“Nossa prática agrícola também respeita os recursos naturais. Milho, mandioca, frutas, tudo que obtemos para alimentação diária sempre foi feito da forma tradicional. Nunca caiu uma gota de pesticida, nenhum elemento químico”, contou.

 

Silêncio administrativo

A comunidade Salango registrou-se como comunidade camponesa em 1979, devido à falta de uma figura legal que reconhecesse sua identidade indígena no Equador. Em 1991, o Estado reconheceu legalmente que seus integrantes eram proprietários de 2.536 hectares de território ancestral.

Em 2000, porém, a Assembleia Geral Extraordinária da comunidade de Salango decidiu, com menos da metade do quórum requerido, pela venda de parte do território a um empresário suíço. E, no ano seguinte, solicitou ao Ministério da Agricultura e Pecuária a autorização para a venda desse mesmo lote. O ministério consultou o Procurador Geral do Estado para verificar se as normas então relacionadas à proteção de povos indígenas eram aplicáveis à comunidade de Salango. A resposta foi negativa.

Em setembro de 2001, o presidente do Conselho de Salango solicitou ao Ministério a autorização para a venda de mais um novo lote de terra e insistiu na venda anterior. Sem receber resposta, alegou “silêncio administrativo” e conseguiu que, em dezembro do mesmo ano, o Trigésimo Sexto Cartório de Quito protocolasse os documentos de compra e venda de parte do território original da comunidade.

Em 3 de maio de 2002, foi inscrita a escritura pública de compra e venda em favor da empresa "Tocuyo S.A.". Logo depois, as vias internas da propriedade, que levavam às praias, foram registradas como caminhos privados pelo representante legal da empresa.

Os integrantes da comunidade que não concordavam com a venda ainda apresentaram uma ação de proteção, argumentando violação de seus direitos à propriedade comunitária, à identidade cultural, ao trabalho, ao habitat e ao desenvolvimento como povos indígenas. Também alegaram a ausência de participação em decisões estatais que impactavam diretamente a comunidade. Mas a ação foi rejeitada pela Justiça.

 

Relação com o mar

Presente na audiência como perito, o antropólogo Florencio Delgado reforçou o caráter ancestral de Salango, com ênfase na relação cultural e espiritual da comunidade indígena com o mar.

“Uma parte fundamental do território de Salango é o mar. Negar esse acesso a eles é negar a prática de atividades ancestrais”, explicou.

Na mesma audiência, a advogada Alejandra Montero Riofrío, do Centro de Direitos Humanos e Natureza da Pontifícia Universidade Católica do Equador, afirmou que as autoridades públicas e judiciais interpretaram a lei equatoriana de forma equivocada, levando à negação dos direitos coletivos da comunidade indígena de Salango.

De maneira específica, a também advogada Amanda Mosquera, da Fundação Regional de Assessoria em Direitos Humanos, ressaltou que o Estado do Equador falhou em reconhecer a pessoa jurídica do povo ancestral e permitiu a tomada de decisões arbitrárias de autoridades judiciais e administrativas.

“O Estado não garantiu condições jurídicas mínimas para o exercício de direitos coletivos”, disse ela aos juízes da Corte IDH.

A defesa da comunidade indígena pediu reparação integral por parte do Estado equatoriano, além da restituição dos territórios ancestrais de Salango e a reabertura dos caminhos milenares da comunidade.

 

Direito ao território

Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a inexistência de uma norma adequada no Equador levou a comunidade de Salango a se registrar oficialmente nos anos 1970 como comunidade camponesa, apesar de ser indígena.

Ainda segundo a CIDH, a Procuradoria Geral do Estado negou a proteção dessa comunidade, violando uma série de direitos, como o direito à proteção judicial, direitos culturais e ao território.

“A inscrição do território em favor de um terceiro provocou a privatização de caminhos ancestrais que davam acesso ao mar, impedindo a realização de atividades fundamentais para a subsistência da comunidade, como a pesca”, afirmaram representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos na audiência com a Corte IDH.

De acordo com a CIDH, as autoridades judiciais locais definiram as reclamações da comunidade de Salango como “questões de mera legalidade” e aplicaram o silêncio administrativo para dispor das terras da comunidade de Salango, sem verificar se a decisão de venda havia sido realizada em conformidade com os processos de tomada de decisões tradicionais dentro da própria comunidade.

Para representantes da Comissão, a comunidade de Salango mantém organização própria e uma autodefinição indígena que devem ser protegidas conforme estabelece o direito internacional.

“O caso permitirá à Corte continuar desenvolvendo sua jurisprudência sobre obrigações estatais relativas ao reconhecimento de povos indígenas e processos de compra e venda e registro de territórios reivindicados a terceiros”, disseram os membros da CIDH aos juízes na audiência.

A representação do Estado equatoriano, por sua vez, afirmou que a transferência de parte do território de Salango a um terceiro foi feita voluntariamente.

Disse ainda que todas as praias do país são públicas, mas reconheceu que o único acesso terrestre à Praia Dourada, em questão no caso, passa por uma propriedade privada, e que atualmente não existe uma passagem de pedestres livre para a comunidade.

A audiência do caso de Salango foi a primeira de uma série realizada excepcionalmente na Cidade da Guatemala, capital guatemalteca, como parte do 176º Período de Sessões da Corte IDH.

As partes envolvidas no caso têm até o dia 19 de junho para enviar suas alegações finais. Depois, os juízes emitirão a sentença.

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